OS PREPARATIVOS
Como em toda viagem o fundamental é preparar-se na tentativa de diminuir as desagradáveis paradas para inesperados consertos, evitar possíveis incidentes e até acidentes, tratei de providenciar tudo da seguinte forma:
Tinha comigo um mapa da região Nordeste, que na época Postos de Gasolina distribuíam gratuitamente. O meu, no caso, ganhei-o num Posto Atlantic. Não era grande coisa, mas era o que havia.
Relacionei o que considerei necessário e essencial levar, fosse para uso pessoal ou para a moto, e a seguir procurei a oficina de um amigo e mecânico exclusivo, Andréa “Carcamano”, para que desse uma “geral” na moto, substituindo o que estivesse gasto e consertando o que fosse necessário.
Em conversa enquanto ajeitava a “deusa”, fez uma pausa e então perguntou: Quais ferramentas você vai levar? Descrevi-as para ele, inclusive bomba de ar acionada com o pé, e assim que terminei fez-me nova pergunta: E saca pneu, não está levando? O que irá fazer se furar o pneu no meio do nada na estrada, vai carregá-la nas costas? É mesmo, respondi, esqueci desse importantíssimo detalhe. Ato contínuo ele levanta, vai até uma caixa de ferramentas e presentei-a-me com dois saca pneus. E olha, foram extremamente úteis na viagem.
A seguir fui procurar o amigo patinador e lanterneiro (funileiro para os paulistas) a fim de estudarmos como seria possível fazer os procedimentos que seguem:
1) Reforçar o pára-lama traseiro sem prejudicar a suspensão elástica, de forma que possa suportar peso de pequena maleta com algumas roupas. Essa era a minha intenção inicial, mas foi alterada e a explicação está mais adiante;
2) Colocar tirantes laterais na parte traseira (um de cada lado), para poder sustentar duas pastas com alças (pastas que antigos colegiais usavam). Nelas levaria ferramentas e outros materiais necessários para consertos e outros imprevistos que pudessem ocorrer com a moto na estrada, levando inclusive uma pequena bomba de ar para encher pneu, acionada com o pé, que um amigo emprestou-me.
Ao comentar com esse companheiro Fernando (apelido “Pernambuco”), sobre a minha viagem, imediatamente se ofereceu para ir na garupa da moto, alegando que ele seria útil pelo fato de ajudar em algum imprevisto de lanternagem que pudesse ocorrer no caminho. E até mecânica faria, porque seu trabalho exigia também um pouco dos conhecimentos de mecânica, sem falar da agradável companhia que eu teria do amigo, brincou.
Mediante seu interesse e ajuda que certamente poderia prestar, concordei.
Uma verdade posso afirmar: Sem a colaboração dele eu não teria conseguido meu intento. Mais adiante, no decurso da narrativa isso ficará claro.
A ViagemA partida: Dia 14 de fevereiro de 1960, Rio de Janeiro, RJ
1º DiaConforme combinado, o Fernando foi até minha casa onde nos arrumaríamos e partiríamos para a viagem.
Após já vestidos com nossas roupas apropriadas para o trajeto, tratamos de organizar os apetrechos na moto. Colocamos duas maletas com roupas no bagageiro traseiro adaptado pelo Fernando. Nos tirantes das laterais também por ele adaptados, prendemos duas pastas com ferramentas e outros objetos para manutenção da moto. Levamos dois bornais à tiracolo contendo algum alimento, radinho de pilha, máquina fotográfica, medicamentos de emergência tais como esparadrapo, gaze, éter, mercurocromo, anaseptil em pó e algo mais que fosse necessário e não coube nas maletas de roupas.
Dinheiro já levava comigo em espécie, isto porque na época era difícil, demorado e às vezes até impossível descontar cheques em outras cidades. Caixa 24h não existia e nem sabíamos que iria existir.
Considerando então não faltar mais nada, dei por encerrada essa preliminar da partida.
Tudo pronto, despedidas daqui, despedidas dali, boas sortes desejadas por parentes e amigos, manifestações de saudades, cahorros latindo ruidosamente atrás de nós, etc, etc, partimos exatamente às 09:35h de um dia de domingo tranqüilo com sol claro e temperatura amena, razão de na ocasião vestírmos apenas camisas sem gola com mangas curtas, calças jeans, sapatos, bonés, óculos e saímos sentados em cima dos nossos blusões couro.
No tanque, cerca de 10 litros de gasolina, velocímetro marcando 2.145 km, mas não será possível levá-lo em consideração porque depois de alguns dias de percurso o cabo quebrou e não foi possível substituí-lo.
Já na rua acenamos para amigos e vizinhos pelos quais passávamos, uns sabendo da aventura, outros não, e seguimos em frente.
Após algum tempo de viagem, a certa altura paramos para socorrer um ‘irmão’ motociclista que estava parado na estrada com sua moto por causa de um pneu que havia furado. Vendo-o aguardando auxílio, fomos ajudá-lo (na época isso era comum entre motociclistas) pelo que agradeceu dizendo que realmente não tinha condições de consertar por estar sem ferramentas, câmara de ar, ou qualquer outro recurso e já pensava em arranjar carona que levasse a moto até um borracheiro.
Dizendo-lhe que o problema seria rapidamente resolvido, tiramos a roda da moto, sacamos do pneu a câmara de ar furada, colocamos no pneu a nossa câmara reserva, recolocamos o pneu no aro, a seguir enchemos a câmara com nossa bomba de pé. Recolocamos a roda no lugar e após tudo terminado avisamos para que consertasse logo a câmara furada porque a que fora colocada era muito velha, podendo furar a qualquer momento. E que até poderia ficar com ela.
Essa parada foi muito oportuna por termos visto um rasgo profundo na lateral do pneu traseiro da nossa moto, causado possivelmente por uma pedra na estrada, deixando-nos de sobreaviso...
Governador Valadares-MG Nesse trajeto para Teófilo Otoni, além da intempérie enfrentada, tivemos dois incidentes: Um deles foi com a alça de couro de uma das pastas de ferramentas que arrebentou e tivemos de substituí-la por arame; o segundo foi o quadro elástico que rachou na parte traseira, mas como não estava prejudicando e nada seria possível fazer de imediato, deixamos para consertá-lo quando chegássemos na próxima cidade.
Dentre as várias coisas que foram acontecendo durante o trajeto, um fato inusitado ocorreu. Foi o seguinte: A chuva havia parado e o piso estava razoavelmente transitável, mas mesmo assim tínhamos de andar devagar e com cuidado. Acontecia de vez por outra desde quando pegamos estrada, cruzar com bois, cavalos, cabras, jegues e outros animais, passando tranqüilos por todos eles. Hoje, entretanto, aconteceu diferente.
Em um determinado ponto da estrada em que cruzávamos com uma boiada, o “líder” nos estranhou e não sabíamos por qual razão. Então, enquanto a boiada passava por nós em sentido contrário, ele mantinha-se parado à nossa frente, encarando-nos e abanando vez por outra o seu rabo abaixado. Nós, por nosso lado estranhando a situação, paramos também, mas sentimos que ele ainda estava irritado ou temeroso por alguma coisa (ciúmes das vacas não poderia ser, pois nem olhamos para elas) e achamos que pela situação apresentada poderia atacar-nos a qualquer momento.
Eram apenas alguns segundos de tensão, mas que pareciam horas. E para piorar ainda mais a situação, a boiada era grande. Para dele fugir só poderíamos sair para o mato, exatamente pelo lado que ele estava, porque do outro lado a boiada que estava passando formava um muro. Nesse momento, então, o Fernando falou: Acho melhor desligar o motor. Pode ser que ele esteja é assustado com o barulho da descarga livre da moto. Nem havia acabado de falar e eu desliguei-a imediatamente. Dito e feito! Com a moto desligada o bicho se acalmou, parou de agitar o rabo vagarosamente de um lado para outro, abaixou a cabeça e passou tranqüilamente por nós (por precaução nem olhamos para o lado), juntando-se à boiada. Ele devia ser um boi estressado, ou então não estava “no seu dia”, sei lá!
Foi um tremendo susto pelo qual passamos. Imaginou? Um bichão daquele a 5 metros de nós, que não sabíamos se ele estava zangado ou enciumado por alguma coisa; caatinga dos dois lados da estrada, que devido às pequenas árvores miúdas e juntas umas das outras não nos permitiria fugir com a mota, só a pé. Nem quero pensar!
Mas assim que ele passou por nós, quiquei a moto, fiz bastante barulho com a descarga para provocá-lo e parti imediatamente antes que pudesse voltar...
João Cruz
j.v.cruz@oi.com.br