CAMINHOS DA OUTRA EUROPA
A viagem de um casal brasileiro pelas tradições e histórias dos países do Leste Europeu
Estávamos atrás de uma cultura que não encontramos no restante da Europa Chovia sobre o telhado da bela igreja bizantina. O barulho se misturava ao cântico ortodoxo na missa daquele domingo de verão. Os fiéis, indiferentes ao aguaceiro, lotavam o interior do santuário encravado na colina, na região da Moldávia, nordeste da Romênia. Foi uma cena que nos marcou durante a viagem que fizemos por um roteiro fora do eixo procurado pelos turistas na Europa: os países do leste europeu, recém-integrados aos vizinhos ricos pela União Européia.
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EM ASSIS, VISITANDO O SANTO |
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A HISTÓRICA DUBROVNIK |
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FRONTEIRA CROÁCIA E MONTENEGRO |
Aquele é um dos sete mosteiros que foram construídos nos séculos XV e XVI e considerados patrimônio da humanidade pela Unesco. São grandes obras de arte que reúnem murais de pinturas bizantinas, nas paredes interiores e exteriores de suas estruturas. Cada igreja é recoberta de afrescos bíblicos diferentes em cores maravilhosas, que resistiram aos últimos cinco séculos.
Era por momentos como aquele que eu e minha esposa procurávamos quando saímos da pequena Chantilly, ao Norte de Paris, onde vivemos, para percorrer regiões ainda plenas de paisagens rurais e quase inacessíveis. O caminho até os mosteiros da Moldávia fez parte desta viagem de 7.450 Km por 10 diferentes países em um roteiro pouco usual com nossa BMW GS 1200 Adventure, aproveitando o verão europeu.
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KOTOR - MONTENEGRO |
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ENTRANDO NA SÉRVIA |
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MAR NEGRO |
Partimos dez dias antes e cruzamos a península italiana em direção a Assis, primeira de inúmeras escalas motivadas principalmente pelo interesse histórico. Em Assis, nossa curiosidade era ver a reconstrução dessa bela cidade medieval que foi danificada por um terremoto em 1996. Moto e História são duas paixões que compartilho com minha esposa Graça, com quem nas últimas décadas atravessei 40 países de motocicleta.
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A ROMENIA |
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MOSTEIROS DA MOLDÁVIA - ROMENIA |
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MOSTEIRO NA ROMENIA |
Sobreviventes de guerra De Assis fomos até Ancona, no Litoral Leste da Itália, à beira do Mar Adriático, onde tomamos um navio para o porto de Split, na Croácia, que está praticamente em linha reta do outro lado dessa enorme “baía”. Desembarcamos na manhã seguinte e tomamos a direção sul para Dubrovnik, majestosa cidade-fortaleza que durante séculos intermediou o comércio entre as cidades italianas de Genova e Veneza e o Império Otomano. O mármore branco do calçamento ainda é testemunha dos séculos de esplendor de Dubrovnik, duramente danificada ao longo da guerra civil deflagrada na região em 1991.
Continuamos rumo ao Sul e, em poucos quilômetros, uma bela e sinuosa estrada se revelou com montanhas à esquerda e o Mar Adriático à direita. Era a região da fronteira com Montenegro, pequeno estado recentemente separado da Sérvia. Nossa BMW teve ali seu maior desafio por estradas travadas. “Se o país fosse plano – ponderou Graça, com ares filosóficos-, não se chamaria Montenegro, e sim Campobranco. “Melhor concordar... A costa de Montenegro tem menos de 80 km, mas é reconhecidamente uma das mais belas de todo Mediterrâneo.
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Ficamos hospedados em Kotor, uma cidade intramuros rodeada de montanhas. Paisagem de cartão-postal. Conseguimos um lindo hotel junto ao mar e, sem demora, aproveitamos o resto da tarde no Adriático. Deixamos Kotor cedo no dia seguinte para evitar o calor. Mal sabíamos que nas próximas dez horas percorreríamos apenas 400 km. As estradas estreitas, de curvas fechadas, com tráfego de caminhões dirigidos por motoristas completamente inconseqüentes pedia cautela. A cada 200 metros placas de granito negro com fotos de vítimas de acidentes mostravam a seriedade da coisa.
Cruzamos a Sérvia, país sem maiores atrativos, ainda tremendamente marcado na paisagem e no povo pelas recentes guerras da Bósnia e do Kosovo. Tivemos que desviar justamente da região do Kosovo, ainda em conflito, acrescentando 400 km ao roteiro previsto. Pernoitamos em uma cidade sem charme chamada Kralievo a fim de chegar no dia seguinte à Bulgária, conde passamos 24 horas em um belíssimo hotel na capital Sofia. Nosso destino era a Riviera Búlgara, no Mar Negro. O Mar Negro, na verdade, é azul, muito azul. Tem menos sal que os outros da região e suas praias são amplas e de areias brancas. Os búlgaros são um povo amável, porém reservado. Felizes por terem sido aceitos recentemente pela União Européia mostraram sempre muita curiosidade em relação à moto, batendo fotos e colocando as crianças no banco.
Cemitério Feliz Deixamos a Bulgária pelo Norte e entramos na Romênia. Ali, encontramos Larry e Margie, um simpático casal de americanos que viajava em uma imponente Honda Gold Wing. Há quatro meses percorrendo a Europa, os americanos tinham planos de ir até a capital, Bucareste. Depois de meia hora de conversa, acharam nosso roteiro, que incluía as montanhas do Norte, os mosteiros da Moldávia, a Ucrânia e a Polônia, muito mais interessante que Bucareste.
Na companhia de Larry e Magie enfrentamos as duras estradas da Romênia, um percurso mais tranqüilo para a GS que a Gold Wing, que penava para vencer os intermináveis remendos, desníveis e buracos das pistas construídas ainda sob regime comunista, há 40 ou 50 anos atrás. Os romenos são, em geral, festivos e alegres. Lembra o comportamento mais expansivo dos latinos. Com traços da civilização romana e forte presença cigana, é sem dúvida um dos países mais coloridos e ricos em detalhes que já visitamos. O nível de desenvolvimento é claramente inferior ao dos países vizinhos no Leste Europeu, basicamente um país rural, fruto da ditadura retrógrada à que os romenos foram submetidos durante o período socialista.
A moto precisava negociar espaço com carroças, vacas, cabras, burros, gansos e rebanhos de ovelhas, cujos pastores preferem utilizar a estrada. Muita atenção, porque ao fazer uma curva a 80 km/h não era raro encontrar uma carroça ou vacas passeando tranquilamente, como se caminhassem no pasto. Em um vilarejo perto da fronteira, chamado Sapanta, fizemos uma pausa para conhecer um lugar inédito: um cemitério feliz. Nos anos 30 do século passado, o marceneiro Pasagras decidiu fabricar lápides em madeira onde estivessem entalhados detalhes da vida do defunto: profissão, características pessoais e até a forma como morreu. O cemitério tem hoje decorados em cores vivas todos os túmulos, como se seus ocupantes contassem aos visitantes um pouco de suas vidas e mantivessem, assim, uma espécie de comunicação com os vivos.
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SAPANTA O CEMITÉRIO FELIZ |
Cruzamos a fronteira ucraniana por um pequeno posto de fiscalização tão remoto que, a apenas 20 km dali, quando perguntei, um caminhoneiro romeno não fazia idéia de onde ficava. Resolvi arriscar, para espanto dos disciplinados americanos que nos acompanhavam. Passei pela contra-mão ao lado da fila de carros, até a barreira. Com a ajuda dos agentes, passamos em 30 minutos. Isso, graças ao fascínio que as motos criaram nesse lugar perdido no mapa. Um motorista que pacientemente esperava sua vez e seria o próximo a ser atendido me contou que estava na fila há sete horas.
Sabe ler cirílico?Por boas estradas entramos cautelosamente em território ucraniano. As poucas placas estavam, como na Sérvia e Bulgária, escritas em alfabeto cirílico. Recomendo a quem quer viajar por esses países que decore o alfabeto cirílico. São 32 letras. Ajuda muito: PECTOPAH, por exemplo, significa restaurante. Já não passaríamos fome.
Nosso destino naquele dia seria L´viv, Sudoeste da Ucrânia. Não muito distante da fronteira com a Polônia, jóia remanescente do período de grandeza do império austro-húngaro. Ficaríamos três dias curtindo a bela arquitetura e o clima agradável e ensolarado da cidade. No frescor da manhã e com o prazer de sentir o vento batendo no rosto só deixaríamos L´viv para conhecer a Polônia. Novamente cruzamos a fronteira sem demora graças ao entusiasmo dos policiais pelas motos.
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A Polônia, depois de percorrer Sérvia, Bulgária, Romênia e Ucrânia nos dá a impressão de ser outro mundo. Por estradas bem mais transitáveis, que permitiram a Gold Wing de Larry finalmente manter a velocidade médica mais elevada, rodamos entre montanhas e vilarejos adoráveis, floridos e bem cuidados, enquanto elogiávamos o bom gosto dos jardins poloneses. Queríamos chegar a Cracóvia, Sul da Polônia, sem dúvida a cidade mais linda do país. Perto fica o conhecido campo de concentração de Auschwitz, que também visitamos. A cidade, alegre e de arquitetura excepcional, é o lugar mais visitado da Polônia.
Em Cracóvia nossos amigos Larry e Margie retomaram o roteiro original. Seguiram para Praga, na República Checa, e nós, para Dresden, na Alemanha. Nos restava uma linha quase reta de 2.000 km até voltarmos para Chantilly.
Depois de 20 dias de viagem, as cores, perfumes e impressões daquelas semanas no Leste Europeu ficaram gravados em nossas memórias.
... Tudo porque, anos atrás, nos atrevemos a tirar nossa moto da garagem para experimentar maiores distâncias e fronteiras cada vez mais afastadas.